Dec 3, 2007

O Passado a Preto e Branco

A tradição medieval, recriada durante o Romantismo europeu, ou mesmo pela Nossa DGEMN, construiu-se sob uma forte marca de penumbra bucólica e lacrimejante dos românticos, ou mais ascética e cinzentona do nosso Portugal Salazarento. Todavia, sabe-se hoje, num momento onde a cor e o movimento são a tónica, que as lúgubres catedrais medievais eram verdadeiras explosões de cor e movimento, que nem os mais aberrantes abusos barrocos suplantavam.
Todavia, e apesar de se conhecerem já importantes estudos e apelos à cor na Pré-história, pouco se tem feito por cá.
O caso que aqui trago, mais que um apelo à cor nos monumentos, é uma chamada de atenção à sensibilidade cromática pré-histórica na construção da paisagem dos antepassados.
A utilização direccionada e selectiva das matérias-primas, apesar de um evidente cariz funcional, era muitas vezes ordenada segundo um critério distinto, onde a questão cromática não seria despicienda. A conjugação do granito com o xisto, ou do calcário com o xisto é disso bem evidente, como ficou bem patente na monografia de Alcalar 7. No recentemente intervencionado monumento da Marcela (em escavação por Nuno Inácio, Catarina Oliveira e David Calado), próxima de Santa Rita (Cacela), uma vez mais, as questões cromáticas foram realçadas, como os escavadores bem notaram em visita que efectuei ao monumento. A entrada surge selada por porta de calvário, tal como o lintel da mesma, demarcando a área de passagem para a câmara sepulcral construída em Grés, ficando também clara e transição entre dois mundos.
No Alentejo, onde a aparentemente monotonia do cinzento do granito parece dominar, pouco se tem intentado nesses campos, ainda que as variações dos granitos possam introduzir importantes contrastes cromáticos. Por outro lado, o quartzo, muitas vezes elemento dominante nas construções tumulares, jogaria papel relevante na realidade cromática.
Todavia, gostaria de realçar, em particular, o caso das “Mamoas Negras” enquanto realidades cromáticas de contraste paisagístico com a envolvente.
Na realidade, desde há uns anos que estas me trazem intrigado, quer pelas questões inerentes à sua construção, quer pela sua inserção na paisagem.
Há uns anos, na companhia de Leonor Rocha, identificaram-se dois destes casos de “Mamoas Negras” no concelho de Redondo, na Herdade das Casas e na do Colmeeiro, que constam, essencialmente, de uma estrutura tumular, que envolve uma câmara megalítica, de tonalidade bastante escura, negra, com aspecto bastante argiloso, com frequente material arqueológico, que nos surge claramente contrastante com o solo envolvente, esbranquiçado, resultante da desagregação dos granitos.
Tal fenómeno, apenas é perceptível quando o solo se encontra livre de vegetação.
Numa primeira leitura interpretámo-lo como resultante da utilização de terras provenientes do povoado para a construção da estrutura tumular, atendendo à sua coloração mais orgânica e à presença de materiais arqueológicos cerâmicos e líticos. Assim penso efectivamente que tivesse sido. No entanto, a questão cromática não deveria ser despicienda, ajudando a compor o conjunto cénico do Monumento, alertando, eventualmente, para a ligação da cor escura aos contextos de um Mundo subterrâneo, dos Mortos. Por outro lado, este mesmo contexto, poderia estar relacionado com a presença de rituais associados às épocas das sementeiras quando se lavravam os campos para cultivo, evidenciando o contraste cromático realçado pelas primeiras chuvas.
Na envolvente do monumento das Casas, trabalhos recentes de prospecção, evidenciaram uma notável quantidade e diversidade de pequenos painéis com covinhas, que Passado marcariam simbolicamente este espaço, físico e mental, podendo igualmente associar-se a questões cromáticas, hoje totalmente desaparecidas. Assim, a paisagem construída pelos elementos actuantes conjugava o contexto cromático Natural, com os elementos contrastantes humanos, que simbioticamente se conjugavam numa Paisagem Múltipla de Cores e Sentidos.